O controle da relevância e da urgência das Medidas Provisórias

Nossa Constituição estabelece no artigo 62 que “em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congreso Nacional”.

Em razão do princípio da Separação de Poderes, deve-se considerar que a prerrogativa de Legislar pertence ao Legislativo. Toda e qualquer norma que confira competência legislativa ao Poder Executivo deve ser vista com cuidados. A indicar isso, basta ver a preocupação do Constituinte, manifestada no artigo 25, I do ADCT, no sentido de considerar revogados “a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a (…) ação normativa”.

Justamente por conta disso é que a competência para a edição de Medidas Provisórias é altamente restrita ao que seja “relevante e urgente”. Logo, como o Presidente somente pode editar MP’s quando haja relevância e urgência, verifica-se que a ausência de um desses pressupostos (a Constituição fala em relevância E urgência) leva à inconstitucionalidade formal da norma veiculada pela MP.

Mas será que no desenho institucional brasileiro cabe ao STF a verificação de tais pressupostos?

Esta pergunta é respondida pela própria Constituição, que estabelece, no art. 62, § 5º, que “A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais”.

Este dispositivo (assim como a prerrogativa de Legislar do Congresso Nacional) levam o STF a adotar uma jurisprudência defensiva sobre o tema. Em regra, pois, nossa Suprema Corte entende que não é atribuição dela o controle dos pressupostos de relevância e urgência, mas sim do Congresso Nacional.  Conforme se extrai da ementa da ADIn 1397, “em princípio, a sua apreciação [da relevância e da urgência] fica por conta dos Poderes Executivo e Legislativo, a menos que a relevância ou a urgência evidenciar-se improcedente”.

Somente em pouquíssimos casos na experiência constitucional pós-88 é que uma Medida Provisória foi rejeitada pelo Legislativo por falta de relevância e urgência. Podemos citar os casos das MP’s 4244168195 e da MP 446, esta última rejeitada não pelo Plenário, mas pelo próprio Senador Garibaldi Alves, que exercia a Presidência da casa à época.

Há casos, porém, em que a ausência de tais pressupostos é tão nítida que o STF entende caber a ele reconhecer o vício de inconstitucionalidade da Medida Provisória.

Esta abertura inicial começou com a ADIn 1753 (inteiro teor aqui), na qual foi deferida liminar em histórico julgamento de 16/04/1998. Confira a ementa:
Ação rescisória: MProv. 1577-6/97, arts. 4º e parág. único: a) ampliação do prazo de decadência de dois para cinco anos, quando proposta a ação rescisória pela União, os Estados, o DF ou os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas (art. 4º) e b) criação, em favor das mesmas entidades públicas, de uma nova hipótese de rescindibilidade das sentenças – indenizações expropriatórias ou similares flagrantemente superior ao preço de mercado (art. 4º, parág. único): argüição plausível de afronta aos arts. 62 e 5º, I e LIV, da Constituição: conveniência da suspensão cautelar: medida liminar deferida. 1. Medida provisória: excepcionalidade da censura jurisdicional da ausência dos pressupostos de relevância e urgência à sua edição: raia, no entanto, pela irrisão a afirmação de urgência para as alterações questionadas à disciplina legal da ação rescisória, quando, segundo a doutrina e a jurisprudência, sua aplicação à rescisão de sentenças já transitadas em julgado, quanto a uma delas – a criação de novo caso de rescindibilidade – é pacificamente inadmissível e quanto à outra – a ampliação do prazo de decadência – é pelo menos duvidosa. 2. A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law; quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais que, além da vetustez, tem sido reputados não arbitrários por visarem a compensar dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas, de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular j á reconhecido em juízo. 3. Razões de conveniência da suspensão cautelar até em favor do interesse público. (ADI 1753 MC, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 16/04/1998, DJ 12-06-1998 PP-00051 EMENT VOL-01914-01 PP-00040 RTJ VOL-00172-01 PP-00032)
Durante muitos anos o precedente acima ficou isolado como a única hipótese em que a jurisprudência do STF admitiu realizar o controle de constitucionalidade sobre os pressupostos de relevância e urgência. Até que em 14/05/2008, nossa Suprema Corte deu mais uma guinada na reafirmação de tal possibilidade, ao deferir liminares nas ADIn’s 4.048 e 4049, ações nas quais se discutia a impossibilidade de se utilizar de medida provisória para a abertura de créditos “extraordinários” que, nitidamente, não cumpriam os requisitos constitucionais.

Veja abaixo a ementa da ADIn 4.048 (inteiro teor aqui. Aqui também o inteiro teor da ADIn 4.049):
MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA N° 405, DE 18.12.2007. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS. I. MEDIDA PROVISÓRIA E SUA CONVERSÃO EM LEI. Conversão da medida provisória na Lei n° 11.658/2008, sem alteração substancial. Aditamento ao pedido inicial. Inexistência de obstáculo processual ao prosseguimento do julgamento. A lei de conversão não convalida os vícios existentes na medida provisória. Precedentes. II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. III. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS PARA ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. Interpretação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea “d”, da Constituição. Além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das ex pressões “guerra”, “comoção interna” e “calamidade pública” constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea “d”, da Constituição. “Guerra”, “comoção interna” e “calamidade pública” são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de conseqüências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de motivos da MP n° 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP n° 405/2007 configurou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. IV. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Suspensão da vigência da Lei n° 11.658/2008, desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008. (ADI 4048 MC, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 14/05/2008, DJe-157 DIVULG 21-08-2008 PUBLIC 22-08-2008 EMENT VOL-02329-01 PP-00055)
Assim, a posição do STF hoje é essa: em regra não cabe a análise acerca dos pressupostos de relevância e urgência, a não ser que a violação à Constituição seja muito nítida.

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